Era uma vez na Copa...: Sobre um atentado ao direito de greve e uma violência aos servidores da USP

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Sobre um atentado ao direito de greve e uma violência aos servidores da USP




Por Jorge Luiz Souto Maior

A Circular 12/2014 da CODAGE (Coordenadoria de Administração Geral) da USP constitui um atentado ao direito de greve e uma violência aos servidores da USP.
O ato, aparentemente baseado em pressupostos jurídicos, apresentados em tese, tem, na verdade, o propósito de ameaçar os trabalhadores em greve, impondo-lhes um sentimento de medo.
A Coordenadoria tenta escorar-se na legalidade, mas lida com o ordenamento jurídico de forma conveniente, pinçando apenas os aspectos que lhe interessa. Neste contexto, finge esquecer que a greve dos servidores, que é um direito fundamental, constitucionalmente assegurado, teve início porque a Administração da Universidade não cumpriu o preceito da Constituição Federal que garante aos servidores púbicos o direito à “revisão geral anual”, destinada à recomposição do poder aquisitivo da remuneração (art. 37, inciso X).
A Administração da Universidade tenta fazer crer que não pode dar o reajuste porque o percentual máximo destinado aos gastos com pessoal já foi ultrapassado, como se o autor do ilícito pudesse ser beneficiado pela própria torpeza. Ora, a Administração da Universidade destinou verbas para várias finalidades indevidas e é completamente imprópria a discussão a respeito de quem, pessoalmente, foi o responsável por isso. A USP não é o reitor ou os membros do Conselho Universitário. Se houve gasto indevido a instituição deve arcar com os efeitos dessa situação, buscando, pela vias legais, a condenação pessoal dos eventuais responsáveis. O que não cabe é deixar de buscar essa responsabilização e ao mesmo tempo punir os trabalhadores, que nada tiveram com o ilícito praticado.
E os equívocos administrativos na seara do orçamento são muitos, englobando, também, a própria falta de discussão a respeito da base de cálculo do orçamento, sobretudo em razão da expansão mal programada da Universidade, havida nos últimos anos.
Em suma, a Universidade está em plena ilegalidade frente aos seus compromissos salariais com servidores e professores e tenta fazer crer que os trabalhadores em greve é que estão cometendo alguma ilegalidade.
Mas que fique bastante claro: do ponto de vista estritamente jurídico, os trabalhadores (servidores e professores) não estão em greve por melhores condições de trabalho. De fato, estão em greve como forma de resistir à ilegalidade cometida pela Universidade, tentando, pela ação política (autorizada por lei), recompor a autoridade da ordem constitucional.
Lembre-se que a ilegalidade da Administração ainda se torna maior quando esta se recusa a implementar uma negociação efetiva com as categorias em greve.
Na realidade vivenciada na USP é inconcebível sequer sugerir que a greve de servidores e professores (com apoio essencial dos estudantes) seja ilegal ou abusiva e tanto a Administração da Universidade sabe disso que até hoje, passados 57 (cinquenta e sete) dias, não se predispôs a entrar com ação na Justiça para interromper a greve por decisão judicial.
E artificializar a situação fez tão mal à Administração da Universidade que esta acabou aprofundando-se na ilegalidade ao tentar “massacrar” aqueles que deveria tratar como a essência da instituição (os servidores e professores), mas que passou a considerar como adversários a serem abatidos.
Em meio ao contexto das ilegalidades cometidas, a Administração da Universidade viu-se legitimada a invocar a Lei n. 7.783/89 para ameaçar os servidores com o corte de salário e para chamar de “ímprobos”, ou seja, desonestos, os trabalhadores que registram seu comparecimento ao local de trabalho, mas que não trabalham.
Ora, a Lei n. 7.783/89, que em muita medida já é restritiva do direito constitucional de greve, deve ser aplicada por inteiro e não seletivamente, devendo ser considera, também, a experiência jurisprudencial que lhe diz respeito.
Do ponto de vista concreto, somente há desconto de salário na greve quando esta é considerada ilegal ou abusiva. Do contrário, a jurisprudência trabalhista jamais recusa aos trabalhadores em greve considerada legal o direito ao salário.
Conforme Ementa, da lavra do Dr. Rafael da Silva Marques, aprovada no Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas, realizado em abril/maio de 2010: não são permitidos os descontos dos dias parados no caso de greve, salvo quando ela é declarada ilegal. A expressão suspender, existente no artigo 7º. da lei 7.783/89, em razão do que preceitua o artigo 9º. da CF/88, deve ser entendida como interromper,  sob pena de inconstitucionalidade, pela limitação de um direito fundamental não-autorizada pela Constituição federal”.
Ora, se a greve é um direito fundamental não se pode conceber que o seu exercício implique o sacrifício de outro direito fundamental, o da própria sobrevivência. Lembrando-se que a greve traduz a própria experiência democrática da sociedade capitalista, não se apresenta honesto impor um sofrimento aos trabalhadores que lutam por todos, que, direta ou indiretamente, se beneficiam dos efeitos da greve.
Para negar aos trabalhadores o direito ao recebimento de salário no período em que exercem o direito de greve escora-se em previsão contida na Lei n. 7.789/89, que assim dispõe:
“Artigo 7º - Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.”
Imagina-se que este dispositivo tenha retirado dos trabalhadores o direito de recebimento de salário durante o período da greve, mas de fato, vale reparar, não há disposição expressa neste sentido. Aliás, nem poderia ser diferente porque a perda do salário só se justifica em caso de falta não justificada ao trabalho e é mais que evidente que a falta de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está mais que justificada, afinal a greve é um direito do trabalhador.
Quando o trabalhador está exercendo o direito de greve sequer se pode falar em “falta ao trabalho”, vez que a greve pressupõe ausência de trabalho e não ausência ao trabalho. Os trabalhadores em greve comparecem ao local de trabalho, para fazerem suas manifestações e reivindicações.
Neste sentido, aliás, fazer constar a presença nos registros de freqüência não é desonestidade alguma, até porque há várias modalidades de greve, dentre elas, por exemplo, a conhecida “operação tartaruga”. O trabalhador em greve, idealmente, deve comparecer ao local de trabalho e não trabalhar e se comparece pode, e deve, registrar sua presença, pois a greve, legalmente falando, é ausência de trabalho e não fuga do local de trabalho.
É interessante perceber que em alguns locais de trabalho a experiência humana, dos pontos de vista cultural, acadêmico, político e democrático, é muito mais intensa nos períodos de greve, quando se deixa de lado o trabalho burocratizado, mecanizado, e se estabelece um debate aberto sobre a própria estrutura na qual o trabalho se insere.
Tratando, ainda, da questão jurídico-formal, cumpre acrescentar que na lei não há diferença entre interrupção e suspensão do contrato de trabalho, embora a doutrina tenha criado essa diferenciação em razão da expressão trazida como denominação do Capítulo IV da CLT: “Da Suspensão e da Interrupção”.
O fato é que embora o nome do Capítulo seja o acima aludido, a própria CLT não definiu as figuras em questão. Por esforço classificatório, a doutrina nacional tratou de separar as hipóteses. Mas, sem o pressuposto de uma definição legal, formou-se na doutrina uma divergência a respeito do assunto, pois para alguns a suspensão seria caracterizada pela ausência total de efeitos jurídicos[1] enquanto que para outros a produção de alguns efeitos não a descaracterizaria[2]. Para estes últimos, o elemento diferenciador seria apenas o recebimento, ou não, do salário, com a conseqüente contagem do tempo de serviço.
Na verdade, a discussão acadêmica acerca do melhor critério para separar interrupção e suspensão tem pouca ou nenhuma importância, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação devem ser determinados na lei.
Assim, quando a Lei n. 7.783/89 traz a expressão suspensão não se pode atribuir a ela os efeitos jurídicos postos por uma classificação de caráter doutrinário, que sequer se apresenta de forma unânime.
O que importa, unicamente, é saber o que a lei considera suspensão da relação de emprego e quais efeitos jurídicos são por ela, a lei, mantidos vigentes durante o período correspondente, sabendo-se que o efeito da manutenção da relação de emprego está sempre presente.
Neste aspecto não pode haver dúvida de que a Lei n. 7.783/89, em nenhum momento, autorizou o desconto dos salários no período da greve. O que diz a Lei é: “...devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.” – grifou-se
Ora, o que se estabelece é que os efeitos obrigacionais não estão fixados pela lei. Assim, não pode o empregador, unilateralmente, dizer que está desobrigado de pagar salários durante a greve, pois não terá base legal nenhuma a embasá-lo.
E, como se está procurando demonstrar, o direito do recebimento de salário é um efeito obrigacional inegável na medida em que, por lei, o não recebimento de salário somente decorre de falta injustificada ao serviço, ao que, por óbvio, não se equipara a ausência de trabalho em virtude do exercício do direito de greve. É evidente que o exercício de um direito fundamental, o da greve, não pode significar o sacrifício de outro direito fundamental, o do recebimento de salário.
A interpretação extensiva dos termos da lei, implicando na negativa ao direito de recebimento de salários, é imprópria mesmo sob o prisma das técnicas de interpretação do direito comum, quando mais em se tratando de um direito social. É evidente que a preocupação do legislador, ao dizer que a greve “suspende o contrato de trabalho”, foi a de dar ênfase à preservação da relação de emprego, evitando que o empregador considerasse os dias parados como faltas ao trabalho e propugnasse pela cessação dos vínculos jurídicos. É o que consta, ademais, com todas as letras no parágrafo único do artigo 7º., da lei em questão: “É vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos artigos 9º e 14.”
Lembre-se que as ameaças econômicas, como represálias à adesão a atividades sindicais – e a greve é a principal delas – para intimidar e gerar medo nos trabalhadores, constituem atos antissindicais, tais como definidos na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952), que justificam, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.
Em suma, ainda que em tese se pudesse sustentar que a greve suspende os contratos de trabalho, gerando o não pagamento de salários, não se aplicaria tal interpretação jurídica ao caso concreto vivenciado na greve da USP, ainda mais porque a manutenção dos salários está integrada ao patrimônio jurídico dos servidores como efeito do direito consuetudinário. Lembrando-se também que o direito não existe em abstrato, vale reparar que o argumento a favor do desconto dos salários no contexto atual serve unicamente para causar mal estar aos trabalhadores que, sabidamente, estão integrados a uma greve legal, que mesmo sob a lógica da posição assumida pela Universidade não geraria esse efeito, ainda que a greve fosse judicializada. Ademais, nenhum direito pode ser exercido com o propósito exclusivo de causar sofrimento ao outro, ainda mais quando se pretende por esse sofrimento persuadir o cidadão a abrir mão de um bem, constitucionalmente assegurado como um direito fundamental.
Esperava-se que Universidade assumisse o grave problema da ausência de reajuste salarial que a má administração gerou aos trabalhadores, que são, como deveria saber, a essência da instituição, e que buscasse os meios necessários para solucionar a questão, negociando de forma clara e direta com as categorias em greve, e não que tentasse mascarar os próprios erros, jogando sobre os ombros dos trabalhadores o peso de uma pretensa ilegalidade, avaliada a partir de uma visão seletiva e conveniente do ordenamento jurídico, e que cometesse, ainda, o despropósito de violentar os trabalhadores com a acusação rasteira e desrespeitosa da desonestidade.
Não sendo assim, o mínimo que se pode aguardar no presente momento, para que a crise não se instaure de forma incontornável na Universidade, é que a Coordenadoria de Administração Geral tenha a grandeza de rever seu posicionamento.


[1]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr, 2003, p. 281 e 301.
[2]. CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego: comentários aos arts. 442/510 da CLT. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições trabalhistas, 1965, p. 242; DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2002. p. 1032.

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